quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Um som, duas solidões.



Um pouco só, pensou. Caminhou pela areia suja, os pés descalços. Indiferente à qualquer imundice depois de pensar tanto sobre si mesma. Roupas surradas, sentou-se na beira da calçada que alcançou, inerte. Um abraço invisível deu em si mesma. Tudo bem, talvez mais do que um pouco, meditou novamente.

Há duas semanas saiu de casa, que não era seu lar. Não havia ninguém lá além de ratos que compartilhavam suas noites de vinho. Andava de hotel em hotel onde todos os recepcionistas a estranhavam pela sua aparência, mas logo tirava da carteira dinheiro vivo e se tornava especial e querida. Uma única pessoa que teve de verdade não mais a visitava em seu apartamento agora abandonado, esquecera-a completamente. E suas últimas palavras só encheram mais um copo de tristeza na noite.

As pessoas assustavam-se ao vê-la sozinha. Por que a solidão espantava? Estava quieta, submetendo-se cada vez mais a própria escuridão do seu interior como talvez uma forma para deixá-lá livre. Não agradaria a mais ninguém, abandonando até a si mesma.

De repente, o som de um piano ao longe lhe despertou as mágoas. E estas vieram como as correntes fortes do mar, levando-a para o som... Lembrou de seu último beijo, um gosto levemente salgado. E um último abraço dado sozinho, sem outras mãos em sua volta. E um folheto, por fim, que dizia "Aulas de piano", entregue em suas mãos.

 Com licença,  disse-lhe um rapaz  Alguém lhe mandou isto.  Entregou-lhe, então, um lírio e um bilhete amassado. Ela levou-o aos olhos ao papel, desperta de seu transe, e jogou o lírio ao longe. "Uma flor melodiosa.". Apenas isto estava escrito, e ela olhou para trás, levantando-se.

Nada. Andou na direção da música que ainda era tocada, melancolicamente, saindo cada nota ao seus ouvidos como um feitiço. As tremulas luzes das ruas davam um ar poeticamente sombrio aos seus passos e ela chegou em uma porta, enfim.

Sua expressão era delicada. Bateu à porta. Por um longo minuto observou a porta branca até ver um objeto passar por baixo dela. Um envelope. Pela primeira vez, não sabia o que esperar daquilo, apesar da indiferença ainda permanecer levemente maior que sua curiosidade. Afastou uma mecha do rosto e caminhou, observando o papel branco. Sentou-se na mesma calçada e retirou um papel azul. Uma carta.

"Silêncio. É o que eu sinto apesar da melodia. Noturnamente, toco em busca de alguém que já se foi. Alguém que fazia os meus sofrimentos valerem a pena, e perdoava os erros que eu pensava serem imperdoáveis. Que me conhecia sombrio e isso não a assustava. E que não consegui entender que cada olhar ia ficando cada vez mais escuro todas às vezes que eu aceitava, indiferente, rotineiro. Sempre que eu pensava aliviado que seria perdoado. Ou pior, esquecendo de cuidar de quem amava. Um olhar que já partira, antes de partir a pessoa. Por quê? Mas eu sei a resposta. Escrevo, sem saber quem está aí fora, escrevo apenas por você que tornou minhas notas tão mudas ao piano. 

Por alguém sem voz."

E essa foi a assinatura deixada pelo pianista. Fechou os olhos, respirando profundamente. Tirou o antigo anúncio que um alguém lhe dera outrora. Uma bola de papel amassada "Aulas de Piano" em letra cursiva. Observou o endereço das aulas: Rua Aurora, 314. Receou um pouco e então teve coragem suficiente para olhar o nome da rua em que estava.


Essa história continua.