Aquela carta a descrevia. Como se a pessoa que a tivesse escrito, fosse aquela que a havia deixado, tornando-se desde então uma sombra e a tornando então um vulto. Atos e consequências, claro. Porém, ela já era crescidinha o bastante para saber que as consequências são escolhas nossas sobre o impacto que tivemos, não qualquer coisa justificável com um "Sua culpa". Ficou olhando para a carta, sentindo-se culpada. "Pode ser que esse cara esteja esperando alguma coisa de mim, 'seja lá quem eu for'", mas ao invés de ir a casa da melodia, foi subindo a rua escura procurando o número 333 estampado em uma casa. "Apenas quero ficar livre de toda essa angústia", disse, com lágrimas nos olhos.
O som do piano foi se distanciando até sumir, e, enfim, chegou no lugar. Observou cuidadosamente a casa, sem, no entanto, estar interessada. Uma grade branca, um pequeno jardim de flores mal cuidadas por trás, logo após uma escada de três degraus que dava na porta: verde. Acima da porta havia um discreto anúncio, como se a pessoa não estivesse interessada naquilo, de fato: "Aulas de piano."
Andou um pouco de um lado para o outro antes de resolver tocar a campainha. Olhou para o relógio instintivamente, 23:50. Instintivamente também, lembrou que aquele relógio não era dela, mas daquele que amara. Porém, antes de conseguir pensar mais sobre isso as luzes da frente da casa se acenderam. A noite a envolveu como um escudo e ela viu a porta abrir. Uma mulher de cabelos castanhos, quase ruivos, apareceu. Olheiras fortes rodeavam seus olhos levemente verdes. Olhou curiosa para o portão já pronta para expressar sua pergunta quando a outra lhe disse "Me perdoe... Só vim lhe entregar esse bilhete", jogando a carta misteriosa pelo portão, esta se intrometeu entre algumas pétalas murchas e formigas. A dama que morava na casa a fitou perplexa enquanto ela dava meia volta e ia embora.
Sentou-se sobre a sombra de uma árvore ilhada pelo cimento e concreto, observando a dama de longe pegar a carta e começar a ler ali mesmo. Não fazia ideia do porque tinha feito aquilo, com a vontade imensa que sentia de voltar ao pianista e conhecê-lo e esquecer do passado como já havia tentado várias vezes. Foi apenas instinto... Maldito instinto, pensou ao ver uma lágrima cair no chão borrado.
Viu a dama entrar na casa com uma certa urgência e ficou atenta imediatamente. Enxugou as lágrimas e esperou. Alguns minutos depois, viu ela sair como um vulto, destrancar as grades e seguir em direção à casa do pianista. Seguiu-a com os olhos até que a escuridão não permitisse mais vê-la.
Como queria que tudo fosse como antes... Uma simples exclamação positiva com o amor. O que estava fazendo vagando pelas ruas, investigando casas? Procurando ele? Procurando sua sombra, seu pedaço de vida que lhe haviam arrancado? Fosse o que fosse, ela pensou "Estou perto de desistir de você".
Tomou um drinque de coragem e começou a descer a rua em direção a casa do pianista novamente. Não viu ninguém e a melodia do piano silenciara. Foi até a porta da casa do pianista e não ouviu nada. Um silêncio inundava a rua inteira e ela não aguentava mais. Estava para bater na porta quando risadas tímidas surgiram ao longe. Olhou para o lado e lá estava o casal, ao lado de uma árvore. O pianista e a dama. Sorrindo como crianças, nada perto da melodia entristecedora que ouviu antes, nada daquele pianista sem voz que lhe mandara o bilhete. Aliás, a dama era simplesmente a voz que lhe faltava e tudo que fez foi juntá-los novamente, aqueles fragmentos de solidão na noite.
Sim. Dois solitários. Não fazia ideia do que os havia separado, mas seu trabalho na noite foi simplesmente o de ser um estúpido cupido, um triste som da noite que acabaria ali, em silêncio e sendo zombado. Suspirou.
Encarava uma pequena estrela solitária, já longe do casal. Sentou-se na mesma calçada do início da noite, perto da areia suja. Olhou, então, para seus pés feridos e imundos da noite com a impressão de que estava esquecendo alguma coisa. Quem seria aquele rapaz do início da noite, que lhe entregara o bilhete? Ele havia sumido completamente. Um anjo, talvez. Riu irônica.Usou suas mãos para se apoiar melhor no chão quando sentiu uma pequena pressão: o Lírio que havia jogado estava lá, na sua mão.
Observou-o com toda uma parte dela entendendo, mas não conseguiria expressar aquilo com qualquer palavra, então apenas o olhava com algumas lágrimas sujas descendo de seus olhos. E todas as sua intenções e ódio do casal, da vida, dos que foram embora e dos que nunca vieram... A vida podia ser muito mais. Um pequeno fragmento pode explodir em epifania.
Deitou-se no chão, enfim, cansada, erguendo o lírio acima da sua visão, juntando-o com as estrelas. Fechou os olhos e assim permaneceu, sentindo lentamente que desaparecia com o frio e com a noite. E tudo o que restou daquele dia foi a pureza.